sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Relógio de Sol
Grupo Poeco - Só Poesia, outubro 1980

Sistema de signos expressivos - a poesia, quando autêntica, ora um processo de reivificação, ora uma aventura do espírito, ora no nível do imaginário, ora no nível da realidade - sempre revela a coesão íntima daquele que a elabora ou cria. Até mesmo um poeta, transfigurado num jongleur da rima e do verso, estruturando poema, mediante sucessivas depurações formais tendentes a transformá-lo num significante total, não desconhece a força atuante e aglutinadora dessa coesão.
Em verdade, essa mesma coesão, com seu locus semântico e polissêmico, com o poder múltiplo de todas as essências - canaliza para o campo da Arte a experiência interna do poeta, o compasso do seu tempo, essa como que historicidade que estratifica o ser, e transluz na unidade da concepção artística e no conteúdo ético do poema.
Não resta a menor dúvida que sunt in nobis semina, que, em nós, se encontram as sementes, onde estão nossos compromissos, nossas retratações, a corrente da vida (a nossa e a dos demais), a consciência da História e da Humanidade, as raízes secretas do ser que a catársis artística disciplina e torna austera.
(...)
Em Thereza Christina, torna-se visibilíssimo o papel da sensibilidade na criação poética, muito embora uma família de poetas maiores, de Baudelaire a Valéry, o tenha acoimado de precário, e haja lançado sobre ele uma convulsiva desconfiança. Os poemas de Thereza Christina apoiam-se nas emoções de um cotidiano biográfico, de ordem episódica ou circunstancial, mas sua validez é tanta quanto o processo de humanização (...)e, em certo sentido os torna intencionais. O que quer dizer: os poemas dessa jovem poetisa, estribando-se numa experiência interna, constituem-se num discurso caleidoscópico, onde cada fragmento revela algo: a lembrança de um rosto, a revisitação de uma cidade, o mistério da noite, enfim, fragmentos que se lhe filtram nos poemas, tornando-os autônomos entre si, e, ao mesmo tempo, consoante a contemplatividade que os enriquece, marcados de unidade existencial.
Nesse teor significativo e esteticizante, alinham-se poemas como Fragmento I, que traduzem o coeficiente lírico de Thereza Christina, da sua natureza profundamente feminina, poemas que se fazem valores permanentes: da autora para a Poesia; da Poesia para a existência...(...)

Carlos Burlamáqui Köpke
Outubro de 1980

Calmaria
Primeiro
um pouco de vento
um pouco de sol
um pouco de nada

depois
um pouco de paz
um pouco de voz
um pouco de luz

e haverá
um pouco de mim
um pouco de ti
um pouco de nós.

Paris

Amanhecer Paris
É despertar imagens.
Irromper manhãs
Sem duvidar sequer.
Açoitar ventos
Com tempestades
E descobrir penumbras
Onde vasto é o céu.

Amanhecer Paris
E desvendar passados
Como premissa única
De quem faz passagens
Da ausência eterna
Em contentamento.

Amanhecer Paris
E não hesitar.
Como se fosse possível
Ressurgir em um só momento
E deixar fluir,
Descartando o tempo
Sem mais presságios

- somente a vida.

Dama da noite
Flor da noite
Que se abre solitária
Sobre os ramos secos
E se entrega distraída
A beijar faces
Com o hálito perfumado e vazio.

Flor pequena
Que se deita no leito frio
E incômodo
E balbucia sons
De contentamento.

Flor de carne
Que se apega
À imagem sedutora da beleza
E se esfrega feito pano
Sobre a pele
Saciando o prazer insatisfeito.

Flor dos homens
Que em seus lábios de paixão,
Oferece a única parte da vida
Que se consome rápido
E se esquece.


Fragmento I

Imagens passam rápidas
e tudo, tudo, tudo
vai ficando dentro de mim.

Reconquisto uma penumbra,
desafio um olhar.

Atravesso um instante
como não ousara antes
e descubro a forma antiga,
lasciva e angular
do meu rosto.


Metáfora

Pranto, desespero único.
Sono intangível
poço sem fundo
abismo de séculos
vão de silêncio
amor sem palavras
noite sem fim.
Boca da noite
de chuva
de mar
em devaneios.


Rosto de mulher
O negro rosto
Os grossos lábios
Os olhos secos
Uma divagação no ar.

As mãos trabalham
O coração dispara
A mente se ocupa
E tudo parece calmo.


Te Deum
A Durval Morkazel Guimarães


Deus conduz o teu destino.
E mesmo que acredites
Que vives sem deus,
Ainda haverá uma invisível força
A conduzir o Universo.


Fragmento II

Penetro no escuro
Como faca reluzente
E abro-o ao meio
Deixando sair os pássaros engaiolados.
A noite tudo cobre
E dissipa-se nas trevas
A carne terna da manhã,
Pairando em umidade
E encontro-me esquecida,
Sem mesmo ter porquê.


Encanto

Divido-te em silêncio,
Em procura e segredo.
Desfaço-te em membranas,
Em vestes tímidas de solidão.
O tempo faz-me presente,
O sono ausenta-se do tempo.
Bate o sol sobre teu olho
E brilha o diamante infinito.


VisitaA Luiz Gonzaga S. Paula

Tua passagem
Foi volta
De centenas de soldados
Em procissão.
Tua voz
Foi canto de cisne
Ao vento
Ao tempo
Em despedida.
Teu corpo
Foi mastro
Erigido sobre o penhasco
E mais alto que a colina à distância
Foi teu vôo
Levando-te num segundo.


Fragmento III

Teu olhar reflete em mim
Como a luz na água.
És como o vento varrendo folhas
Deste meu chão,
Carregando as nuvens de um sol poente.
És mais!

Brisa noturna de uma noite de luar.


Conto antigo

De repente,
Senti-me velha
Como se olhasse
Para todas as coisas
E dissesse:
-Conheço-as bem.
Como se respirasse
Depois de tanto tempo vivido,
Bastando-me somente o riso e o olhar.
E a tarde,
Tão parada
E desmanchando-se lentamente,
Resolveu fazer-me confidências
Como se tudo fosse passado.


Prelúdio

Amo-te com um amor impossível
que se torna possível
sem precisar ser.


Amor
A Vinicius de Moraes
in memoriam (9/07/1980)

O ventre da mulher amada
é o fruto espesso que abriga
o sabor intraduzível da paixão.
Os olhos são espelhos
em constante reflexão
e as mãos trazem óbolos
ao altar sagrado do amor.
Sacia a tranqüila noite
machucando as róseas faces
nos sonhos dourados de alecrim.

A mulher amada
não perderá nunca
esse gosto resguardado
de silêncio e beleza,
pois no leito
faz-se a mais terna das amas,
a mais sábia das anciãs.

Tem cuidado ao amar a mulher.
Pois se não se revela
em místicos cânticos incompreensíveis
cada diminuto transbordar de sua essência,
pecarás por não estares amando.

Cuida de amar a mulher.
Pois nela se guarda
a continuidade da vida
e o dom de satisfazer a sede.
Não abandones esse inviolável mistério
que tanto encanta e embriaga.
Ama a mulher
e não a deixes jamais.


Divisa
A Moses Dodo

Trago
a sede profunda
de um mar
entreaberto
entre duas praias
distantes
onde somente
o horizonte as une
e as divide
em duas partes.


Profecia

Deve ser assim
ambíguo
agridoce
amargo.
Deve ser dolente,
metafísico,
sentimental.
Tal púrpura,
neve,
occipital.
Um passo na longínqua planície arada.
Salto no espaço
feito vôo simulado.
Deve ser triste,
meio alegre,
sorridente.
Névoas cobrindo pastagens.
E da chama,
consumir o calor.